29/11/2010

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 Pharmacia
 
  
 
   No ano de 1327 falecia na Itália o infeliz Príncipe Orsini. Em­bora fosse um homem de excelente constituição física, o príncipe vivera cercado de mercenários encarregados de proteger sua real figura. Naqueles tempos sanguinários, êle tomava as pre­cauções com a sua segurança. No entanto, com sua própria per­missão, foi submetido a terríveis torturas que o acompanharam até a morte.
Um dia, o referido príncipe sentiu uma dor de estômago após o almoço. Seria uma indigestão (ou talvez uma embolia); mas ao invés de deitar-se e repousar, com excelentes possibilidades de recu­perar-se rapidamente, cometeu um êrro-fatal:  chamou os médicos.
Durante o resto da tarde e pela noite adentro, os homens da "ciência" torturaram-no com constantes sangrias, deram-lhe pur­gantes e clisteres, tudo com o fito de "extrair os maus humores". Seu pobre e maltratado estômago teve que aceitar substâncias tais como: urina de égua grávida enriquecida com ervas trituradas, pé­rolas dissolvidas em vinagre com uma pitada de pó de chifre de unicórnio africano, pó de asa de morcego em extrato de mandrágora (colhida na lua cheia), suco intestinal de basilisco com folhas de árvores Giab e muitos outros medicinais do mesmo género.
Provavelmente com um suspiro de alívio, o Príncipe Orsini mor­reu na madrugada.
Claro, o tratamento a que foi submetido o príncipe não era normal. Êle foi excepcionalmente bem tratado. Mandrágoras, árvores Giab, basiliscos e chifres de unicórnio eram importados de regiões remotas e, portanto, caríssimos. Contudo, ninguém jamais viu esses estranhos seres, e à exceção do unicórnio, que talvez seja o rinoceronte, os demais eram provavelmente "fabricados" nos arredores de Roma.
Os menos aquinhoados pela fortuna não podiam pagar esses caros remédios, e deviam contentar-se com medicamentos mais sim­ples, porém não menos fantásticos, como víboras secas, pulmões de raposa e cabelos de enforcado.
De toda essa absurda terapêutica, sobreviveram algumas das muitas ervas utilizadas, que casualmente possuíam mesmo propriedades curativas.
Os tortuosos caminhos do conhecimento     
A razão da estagnação da medicina medieval foi o completo des­conhecimento da química e da biologia e a ausência de qualquer critério de observação científica. Sua medicina baseava-se na auto­ridade dos "antigos", especialmente Galeno, médico helénico do século II. Dotado de um certo talento, esse autor deixara mais de cem volumes, onde se misturavam observações próprias, listas de tratamentos tradicionais e conceituações dogmáticas.
O conhecimento dos gregos clássicos sobre as ciências biológicas não chegara à Europa, pois as invasões de Alexandre Magno ha­viam-no isolado em Alexandria, de onde se transferira para a Síria. Ali se fundaram academias e traduziram-se textos alexandrinos e gregos. Mesclada às experiências químicas dos sacerdotes egípcios, a ciência grega colaborou no desenvolvimento da alquimia síria até fins do século V, quando, por motivos religiosos, os estudiosos foram expulsos, as bibliotecas queimadas e as academias fechadas. Alguns sábios remanescentes se refugiaram na Pérsia e continuaram preca­riamente seus estudos até o século VII, quando caíram sob o domí­nio dos árabes em expansão.
Os maometanos tomaram numerosos- sábios sírios e persas sob sua proteção c nessas novas condições foram estruturando-se as pri­meiras bases da química c da farmacologia, ainda confundidas com o misticismo e a astrologia. Com isso, Bagdad teve a primazia de instalar a primeira farmácia pública (776), e os árabes efetuaram a separação da medicina e da farmacologia como ciências comple­mentares, porém distintas.
Quando os sarracenos se estabeleceram na Península Ibérica, sua cultura passou a penetrar na Europa, e com ela o legado greco-asiá-tico de que eram depositários. As universidades árabes, como a de Córdoba,   foram  centros  importantíssimos  de  difusão  alquímica  e trouxeram  ainda um  avançado conhecimento de  ervas medicinais e da preparação de xaropes e pílulas.
 
 
O irreverente Theofrastus Bombasfus
 
Na Europa, a influência de Galeno durou um milénio e deu origem às mais extravagantes escolas "médicas" (na verdade, seitas de magia simpática). Toda a farmacologia se compunha de listas médicas, chamadas "Pharmacopaeia" e herdadas de Galeno. A con­tribuição medieval limitou-se a novas cópias das farmacopéias ori­ginais, com o lento acréscimo de outras drogas, ao sabor da inspi­ração dos "médicos" da época. O resultado disso foi que, ao fim da Idade Média, cada medicamento se compunha de dez ou quinze ingredientes, cujo teor o pobre Príncipe Orsini comprovou pela maneira mais dolorosa.
A despeito da benéfica influência trazida pelos árabes, a farma­cologia tradicional estava por demais estratificada para se deixar abalar. Sobreviveu intocada até o século XVI, quando surgiu um médico alemão, chamado Aureulus Theofrastus Bombastus Von Hohenheim, conhecido como Paracelso. Esse cavalheiro, irónico e apaixonado, passou a observar os métodos terapêuticos e logo apre­sentou suas conclusões: Galeno fora um simplório e seus colegas eram todos imbecis. Disse isso c fugiu da cidade, acusado de feiti­çaria, como aconteceria inúmeras vezes em sua agitada carreira.
Na realidade, êle perambulava à noite pelos cemitérios estudando os
fogos-fátuos e era  praticante da astrologia.  Mas era tão feiticeiro
quanto os demais médicos e ao menos tentava uma "feitiçaria expe­rimental". Conquanto tenha provavelmente fulminado inúmeros pa­cientes com seus experimentos, procurava os caminhos da ciência. De qualquer maneira, Paracelso tornou-se popular e conquistou inúmeros clientes, o que indica que êle matava menos gente e de forma mais suave que os médicos tradicionais. Esse fato pareceu a seus colegas uma abominável perfídia e ao que sabemos morreu assassinado em 1541, por sicários a mando de seus inimigos. Mas deixou seguidores, os iatroquímicos, que preservaram e estenderam sua contribuição á moderna farmacologia.
O tempo das experiências pioneiras
Afinal, de modo um tanto confuso, os iatroquímicos ampliaram o conhecimento das drogas e popularizaram os extratos vegetais à base de álcool, as tinturas e as águas minerais. Porém, a maior contribui­ção de Paracelso foi romper com a tradição e iniciar a observação científica na medicina. Tanto êlc como seus discípulos haviam-se proposto uma tarefa impossível. Mesmo se considerarmos todo o legado árabe, a ciência não atingira um grau de desenvolvimento que permitisse a descoberta de eficientes meios de cura. A química e a biologia engatinhavam e sequer se cogitava da existência de micróbios e dos elementos químicos.
A farmacologia esperaria ainda três séculos para tornar-se de fato uma ciência. Somente em 1850 o fisiologista francês François Magcndie introduziu  a experimentação farmacológica   em animais, mas a partir daí iniciou-se um progresso vertiginoso, que antes do fim do século varreria toda a velha tradição que Paracelso odiara, mas não pudera destruir.
A descoberta dos micróbios patogênicos levou à invenção das va­cinas por Robert Koch, Pasteur e outros. Mas as vacinas apenas preveniam as moléstias, não as cuiavam. Isso trouxe um problema novo à farmacologia: conhecia-se o causador da moléstia, mas como exterminá-lo sem danificar também o organismo em que se locali­zava? As substâncias capazes de eliminar os micróbios, quando apli­cadas a um doente, geralmente matavam a ambos.
Sob esse problema viveu Paul Ehrlich. Discípulo de Koch, tor­nara-se um trabalhador incansável e entusiasta. Nem a tuberculose que o atacou ainda jovem, nem seus trinta anos de insucesso o aba­teram. Cercou-se de amigos leais e colaboradores preciosos, conse­guiu financiadores como a viúva Jorge Speycr, que o presenteou com um instituto.
Ignorando os que o consideravam um excêntrico idiota, exauriu sua pouca saúde em um trabalho estafante. Em 1909, com 55 anos, já experimentara 605 combinações com composto de arsénico. Com a ajuda de seu assistente, o químico japonês Shiga, realizou a expe­riência número 606.
Então, um sorriso. Vivera à espera daquele momento. A nova substância  chamou-se  Salvarsan.   Ele  descobrira   a  cura  da  sífilis.
 
 
As complexas técnicas modernas
 
A farmacologia tornou-se hoje uma ciência respeitável, dotada de técnica aprimorada, mas não se deve diminuir o papel do acaso, muito importante em algumas descobertas. Foi um acidente inicial que levou Alexander Fleming a descobrir a penicilina. Êle perce­bera que nas culturas de fungo Penicilium as bactérias não se de­senvolviam, e a partir dessa observação acidental deduziu que os fungos deveriam produzir um germicida. Foi o princípio dos atuais antibióticos, que tornaram imensamente mais simples a prática mé­dica. Hoje, morrer de infecção é extremamente improvável.
Com o desenvolvimento da farmacologia moderna, a medicina tornou-se principalmente um problema industrial e social. Por um lado, é necessário organizar uma rede médica capaz de atender a toda a população e, por outro, fiscalizar a indústria dos remédios para que produza de acordo com critérios científicos honestos. A farmacologia criou testes precisos para o exame das drogas terapêu­ticas, mas a leviandade de um fabricante pode levar a desastres como o que ocorreu com a talidomida, substância posta à venda como soporífero e que produzia anomalias nos embriões humanos.
Para proteger as populações, os governos publicam listas oficiais de medicamentos com especificações sobre a preparação e os padrões que devem ser mantidos. Essas listas, como as antigas, chamam-se f ar maço peias.
Além dos antibióticos e dos medicamentos, a moderna fisiologia descobriu substâncias fundamentais para a saúde, como as vitaminas e os harmónios. Outras, como os anestésicos e antictlérgicos, são armas fundamentais do médico. A descoberta de cada uma delas tem sua história particular cheia de sacrifícios e lances dramáticos. Foram degraus que o homem ultrapassou na sua luta contra a enfermidade, sua batalha pela conservação da própria vida, e os resultados obtidos são evidentes.
Hoje, se alguém sente uma súbita dor de estômago, apenas dis­solve O conteúdo de um envelope em um copo de água. O que não diria O Príncipe Orsini se pudesse ver isso. . . 


Enc: conhecer



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